LISBON (PORTUGAL)
Público [Lisbon, Portugal]
March 3, 2023
By Cristiana Faria Moreira e Ana Bacelar Begonha
Desilusão e até indignação são traços comuns nas reacções imediatas às medidas da Igreja para responder aos casos de abuso sexual de menores.
Foi um momento de pouca “compaixão”, com poucas “medidas concretas”. É com estas palavras que católicos e associações que lidam com vítimas deste tipo de crimes reagiram à resposta da Igreja ao relatório da comissão independente sobre abusos sexuais. Pelo menos, 4815 crianças e jovens terão sido alvo de abusos por parte de membros da Igreja Católica nos últimos 70 anos e, por isso, era grande a expectativa esta sexta-feira para saber o que ia esta instituição fazer perante as vítimas e para evitar novos casos. Ao final da tarde, o presidente da Comissão Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, anunciou a criação de uma nova comissão para continuar a receber denúncias e analisar casos (embora sem grandes detalhes), de apoio psicológico para todas as vítimas que o necessitem e queiram e um “memorial”. E colocou nas mãos de cada bispo e de cada diocese a decisão de afastar alegados padres abusadores.
Em declarações ao PÚBLICO, Jorge Wemans, jornalista e católico, que foi um dos subscritores da carta aberta que deu origem à comissão independente, considera que a Igreja deu esta sexta-feira “um passo atrás” no caminho que começara a trilhar. Faltaram “medidas concretas” e, sobretudo, uma “reflexão sobre o exercício do poder na Igreja e o profundo clericalismo que a domina” que é precisamente onde “reside a possibilidade de abusos”, defendeul
Mais do que medidas, foram anunciadas “intenções” de “conteúdo minimal” que ao colocarem a responsabilidade nos bispos, podem não só acabar por ser “engolidas no tempo” como por se “diluírem pelas dioceses”, referiu.
Além disso, são “pouco claros os contornos” de certas decisões, como a da criação de uma comissão que, disse, será “constituída demasiado dentro da Igreja”, o que lhe retira “credibilidade junto das vítimas” por estar “demasiado próxima dos abusadores”. “Se queremos manter uma linha aberta, é preciso uma instituição autónoma”, defendeu.
Nuno Caiado, católico, que foi o primeiro subscritor da primeira carta aberta à Igreja, lamentou que “as questões éticas, primeiro, e as questões morais, depois, pareçam ter ficado soterradas pelas questões do direito, quer canónico, quer civil”.
Em reacção às medidas da Igreja apresentadas, Nuno Caiado refere que ficam aquém e que assentam numa “uma resposta equivocada”. “Não esperava mais, mas desejava mais. A Igreja parece não ser capaz de construir uma resposta sólida ao problema”, disse, citado pela Lusa.
Este católico criticou ainda a posição da CEP sobre uma possível indemnização às vítimas que, disse, traduz uma “insensibilidade atroz” por fazê-las depender de um processo cível. “Eu faço parte do grupo de pessoas que não considera que as indemnizações sejam, propriamente, a melhor solução. Daí a fazer depender de um processo nos tribunais civis parece-me uma coisa extraordinária e inaudita. O que temos aqui em causa é postergar a clarificação que já devia aparecer hoje. E isso parece-me um pouco triste”, frisou.
“Não me parece razoável esta lentidão e esta indefinição relativamente aos procedimentos que vão ser tomados para lidar com cada um dos casos, fazendo depender cada caso de novas informações sobre a pessoa. Tem de ser mais do que isso, não pode haver uma passividade para que as informações caiam no colo”, disse, lamentando ainda que a CEP tenha ignorado as propostas apresentadas na carta aberta organizada por um grupo de católicos.
“Não se nota compaixão”
Do lado do movimento Nós Somos Igreja, um dos subscritores desta carta aberta, Lisete Fradique afirmou que as medidas apresentadas pela CEP são uma mão cheia de nada. “Eu não consegui vislumbrar nada de concreto. Houve uma fuga sistemática para as questões legais. Está aqui um problema moral”, disse, em declarações à SIC Notícias. E defendeu ainda que os que encobriram casos de abuso “deviam ter a coragem de sair”.
Lisete Fradique sublinhou que mesmo tendo sido feito um pedido de desculpas às vítimas de abusos, algo faltou na forma como a Igreja, na pessoa do bispo D. José Ornelas, se dirigiu às vítimas. “Não se nota compaixão”, notou. “Mais importante é o reconhecimento do abusador, o pedido de desculpa directo”.
Sobre o memorial que a CEP anunciou na conferência de imprensa, aproveitando também a realização da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, disse-se “chocada”. “Isto é uma dor imensa. Misturar estas duas coisas. Deveria ser algo de recolhido. Quem foi abusado estará a reviver toda a experiencia, disse, emocionada.
Lisete Fradique disse ainda que gostaria de ter ouvido algo sobre a formação dos clérigos. “Vai-se mudar o currículo na formação dos padres? Nós defendemos a existência de mulheres na formação dos padres para compreender a totalidade do ser humano. Estas pessoas têm sexualidades distorcidas”, defendeu.
“O relato das vítimas tem de ser valorizado”
Também em reacção às medidas apresentadas pela CEP para responder aos abusos cometidos a menores na Igreja Católica, Ângelo Fernandes, da associação Quebrar o Silêncio, levantou dúvidas relativamente ao apoio psicológico que será dado às vítimas.
“Como se vai operacionalizar o apoio psicológico nas dioceses? A minha leitura é que as vítimas não estavam confortáveis para ir às dioceses falar das experiências de abuso”, notou Ângelo Fernandes, referindo-se ao facto de as dioceses já terem supostos espaços para denúncia de abusos.
“Eu não me sentiria seguro. Estamos a falar de trauma. O trauma continua a estar presente, 20 ou 30 anos depois. Os homens sobreviventes dizem que não têm um minuto de paz”, disse o presidente da Quebrar o Silêncio, que apoia vítimas de violência sexual.
Para a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), as medidas apresentadas pela Igreja revelam “sinais de que há alguma vontade”, mas pouco mais. “Esta desconfiança em relação à palavra das vítimas é algo que nos preocupa. Esse relato tem de ser valorizado”, disse Carla Ferreira, membro desta associação também na SIC Notícias, referindo-se às declarações de D. José Ornelas em que sublinhou que são precisos “dados e descrições plausíveis para que [a Igreja possa] investigar concretamente”.
Para a responsável da APAV pelo acompanhamento dos casos de violência contra crianças e jovens, “a tal investigação interna tem de ocorrer senão estamos simplesmente a validar que os actos continuem a acontecer e a pôr potenciais vítimas em risco”. Defendeu ainda que as pessoas que estiverem a ser investigadas devem ser afastadas “em termos preventivos” e que isso não ficou claro nas explicações dadas esta sexta-feira pela CEP.
Também Pedro Strecht, que coordenou o trabalho da comissão independente ao longo do último ano, defendeu os dados remetidos à Igreja são “importantes e significativos”. E que não são propriamente uma novidade. “A lista que foi entregue faz parte daquilo que a igreja já sabe também diocese a diocese. Esses dados foram trabalhados também pelo grupo de investigação histórica na pesquisa que foi realizada nos arquivos históricos e secretos, portanto não vejo assim motivo para preocupação”, disse Pedro Strecht, à saída de uma reunião com as ministras da Justiça e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Acrescentou ainda que a Igreja dispõe de “dados sobre cada um desses casos”, algo que foi também destacado pela socióloga Ana Nunes de Almeida e pelo psiquiatra Daniel Sampaio — que também integraram a comissão.
Linhas de apoio para vítimas de violência sexual
Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
Linha de apoio: 910 846 589; E-mail: apoio@quebrarosilencio.pt
Associação de Mulheres Contra a Violência – AMCV
Linha de apoio: 213 802 165; E-mail: ca@amcv.org.pt
Emancipação, Igualdade e Recuperação – EIR UMAR
Linha de apoio: 914 736 078; Email: eir.centro@gmail.com
APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
A associação dispõe de uma equipa especializada para apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual – Rede CARE. Linha de Apoio à Vítima, gratuita, todos os dias úteis 8h-22h – 116 006
care@apav.pt
www.apav.pt/care
“Os senhores bispos não têm nenhuma surpresa com esta lista. Esta lista já foi partilhada com os senhores bispos através do grupo de investigação histórica que trabalhou em cada diocese. Esta lista é apenas uma compilação do trabalho que já foi feito”, disse o psiquiatra, citado pela Lusa.
Governo quer alterar prazos de prescrição do crime
Após a reunião com os membros da comissão independente, o Governo emitiu um comunicado em que afirma que dará “continuidade ao procedimento legislativo já em curso com vista à introdução de um novo critério para início da contagem do prazo prescricional” de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual contra crianças.
Prevê ainda o reforço da divulgação da Linha Crianças em Perigo (96 123 11 11, dias úteis das 8h às 20h), “da sensibilização da opinião pública para a prevenção do abuso sexual de crianças, e a necessidade de prosseguir o esforço de capacitação dos vários profissionais que possam ter intervenção na detecção, prevenção e acompanhamento de casos de abuso sexual de crianças”.