BishopAccountability.org
 
 

Policia E Vaticano Investigam Acusacao De Assedio E Abuso Sexual Contra Arcebispo De Belem

By Aiuri Rebello
EL PAIS
January 4, 2021

https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-20/policia-e-vaticano-investigam-acusacao-de-assedio-e-abuso-sexual-contra-arcebispo-de-belem.html

Quatro ex-integrantes do Seminario Sao Pio X formalizaram denuncia ao Ministerio Publico em agosto deste ano acusando Dom Alberto Taveira Correa de usar suposta terapia para ‘curar’ a homossexualidade como pretexto para tocar seus corpos nus e promover abusos como testes a ‘tentacao’ do sexo

Um escandalo silencioso ronda as missas nas numerosas e sempre cheias igrejas de Belem, uma capital catolica —de acordo com o ultimo censo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), em 2010, 860.000 do 1,39 milhao de habitantes da cidade declaravam-se dessa religiao— onde anualmente acontece o Cirio de Nazare, procissao religiosa que e uma das maiores manifestacoes de fe crista do mundo com a participacao de milhoes de pessoas do Brasil inteiro. Em agosto passado, quatro ex-estudantes do tradicional Seminario Sao Pio X, em Ananindeua, na regiao metropolitana da capital do Para, formalizaram no Ministerio Publico acusacoes de assedio e abuso sexual contra o arcebispo metropolitano, Dom Alberto Taveira Correa.

Os fatos narrados aos promotores, que pediram a Policia Civil a abertura de um inquerito que corre sob segredo de Justica, teriam acontecido ha pelo menos seis anos atras, em 2014 – e tambem em anos anteriores —, enquanto os jovens estudavam para tornarem-se padres ou estavam em processo de desligamento do seminario. Todos tinham entre 15 e 20 anos de idade quando os fatos narrados por eles teriam acontecido. A denuncia tambem foi encaminhada internamente na Igreja Catolica. Uma missao apostolica, especie de comissao de investigacao prevista dentro do Direito Canonico, esteve em Belem neste semestre, a mando do Vaticano e ouviu todos os envolvidos, mas ate o momento nenhuma conclusao foi tornada publica.

O EL PAIS entrevistou na semana passada na capital Belem dois dos quatro denunciantes. Um deles, que nao quis se identificar e chamaremos de A., hoje com 26 anos, conta que comecou a ser assediado pelo arcebispo com 15 anos de idade, ainda antes de entrar para o seminario, e foi abusado sexualmente quando estava com 18, em meio a um processo de expulsao do grupo de estudantes e a suposta ameaca da autoridade maxima da Igreja no local de “contar tudo” para a familia dele. O outro, que chamaremos de B., tem 28 anos atualmente, e diz que comecou a ser assediado pelo padre com 20 anos, mas conseguiu afastar-se dele antes de sofrer abusos fisicos.

A reportagem tambem teve acesso ao teor do que foi contado na denuncia pelos outros dois jovens. Um deles, a quem chamaremos de C., com 16 anos na epoca dos fatos narrados, foi quem dos quatro teria sofrido as piores violencias, ficou traumatizado e chegou a tentar tirar a propria vida apos deixar o seminario. As historias que os quatro denunciantes contam descrevem um comportamento metodico do arcebispo para identificar jovens tidos como homossexuais por ele (com ou sem razao), ganhar a confianca deles como uma figura paterna, atrair para sua casa com o pretexto de ajuda-los a se livrar de sua homossexualidade, assediar e por fim cometer os abusos, passo a passo.

Procurado pela reportagem, Dom Alberto Taveira Correa preferiu nao conceder uma entrevista sobre o caso. Em resposta, a arquidiocese indicou um video e nota divulgados pelo arcebispo sobre o assunto no inicio do mes, antes das e investigacoes contra ele serem de conhecimento geral na cidade. Durante uma missa na Basilica no inicio de dezembro, Dom Alberto surpreendeu os fieis presentes ao tomar a palavra e falar sobre o caso, ainda que de forma velada. “Deus me deu coragem para furar o olho do escandalo, o escandalo que estava sendo montado e Deus nos deu a graca de passar na frente”, afirmou na ocasiao. “Se alguem por ventura, por acao do demonio, pensasse em acabar com a Igreja Catolica e a Igreja de Belem, enganou-se radicalmente”, disse sob aplausos.

O arcerbispo Dom Alberto Taveira durante missa. / TARSO SARRAF

Nas redes sociais, existe uma hashtag em seu apoio. Dias antes o arcebispo havia divulgado um video nos canais oficiais da Igreja onde dizia ser alvo de “acusacoes de imoralidade”. “Digo a voces que recebi com tristeza, ha poucos dias, a informacao da existencia de procedimentos investigativos com graves acusacoes contra mim, sem que eu tenha sido previamente questionado, ouvido ou tido qualquer oportunidade para esclarecer esses pretensos fatos postos nas acusacoes”, diz no comunicado. “Reforco estar totalmente disponivel as autoridades, tanto as eclesiasticas como as civis. (…) Adianto que tudo esta sendo acompanhado adequadamente pela Santa Se.”

No mesmo dia, 5 de dezembro, o arcebispo enviou uma carta assinada aos padres e diaconos. “Fui acusado de crimes de ordem moral, sem que me tenha sido dada a oportunidade de ser ouvido. Foram denuncias enviadas a Santa Se, que provocaram uma Visita Apostolica, encerrada nesta semana; foi instaurado um processo em curso junto as autoridades civis”, diz na missiva em papel timbrado da Arquidiocese. “A iminente divulgacao em midia nacional, ao que tudo indica, causara danos irreparaveis a minha pessoa e provocara um profundo abalo a Igreja”, afirma.

Ao que tudo indica, ele temia que as informacoes sobre a investigacao sobre ele saissem numa reportagem da Rede Globo, algo que acabou nao indo ao ar ate a publicacao desta reportagem. “Tenho clara consciencia da improcedencia das acusacoes que me sao feitas, sendo por agora obrigado a aguardar os procedimentos investigativos das autoridades civis, que correm em segredo de justica. Como nao poderia deixar de fazer, constituimos advogados para acompanhar o processo”, diz na carta. “Asseguro-lhe a minha tranquilidade quanto a tudo isso, estou nas maos de Deus, como todos devemos estar sempre, na certeza de que nele esta a solucao para esta situacao, que eu nunca poderia imaginar de passar”, afirma em outro trecho pouco antes de despedir-se “com o coracao cheio de dor e esperanca”.

Orientacao espiritual

Os quatro denunciantes afirmam que aceitaram participar de sessoes particulares de orientacao espiritual com Correa em sua casa em momentos e por motivos distintos, mas que a pratica era muito comum entre os internos do seminario. Eles dizem que desde que chegou a Belem, em 2010, Dom Alberto frequentava o seminario com regularidade e era muito atencioso e acessivel aos estudantes. “Teve sabado pela manha que eu cheguei la na casa dele, tinha fila de meninos para passar pelo atendimento”, contou B. a reportagem. “Era colocado como uma coisa normal. Ai acho que ele ia sentindo a abertura, vendo ate onde conseguia chegar, testando a gente…”, diz ele, que teria comecado a ser assediado por Dom Alberto no inicio de 2013, apos ter sido descoberto pela direcao do seminario em um relacionamento amoroso com um colega e ter sido expulso de la, aos 20 anos. “Eu ja tinha passado pela orientacao particular com ele antes, mas tinha sido tudo muito superficial, eu nao dava abertura. Quando fui expulso, procurei Dom Alberto e perguntei se ainda havia esperanca para mim. Ele disse que tinha um caminho, mas que eu tinha que me abrir ao metodo de cura espiritual dele”, diz B.

Para tanto, os ex-seminaristas ouvidos pela reportagem contam que o arcebispo usava o livro A batalha pela ‘normalidade’ sexual e homossexualidade (Editora Santuario, 2000), do psicologo holandes Gerard Aardweg, com cuja copia presenteava estudantes. O objetivo desta orientacao espiritual seria ajudar os jovens a livrar-se da homossexualidade e tentacoes sexuais de toda a natureza, mas na pratica nao era o que acontecia. “Voltei para a primeira sessao e comecou: queria saber se eu me masturbava, se eu era ativo ou passivo, se eu gostava de troca-troca, se eu assistia pornografia, quando eu me masturbava o que eu pensava… achei estranho mas achei que era o metodo dele”, diz B., de 28.

Depois de algumas sessoes dessa natureza, cerca de cinco, ainda em 2013, o ex-seminarista diz que encontrou em uma missa na cidade um amigo que ainda estava no seminario, e descobriu que o ex-colega estava passando pela mesma coisa. “Aconteceu com ele uma situacao parecida com a minha que culminou em uma ameaca de expulsao, e o arcebispo aproveitou e estava fazendo com ele a mesma coisa que estava fazendo comigo, so que ja um passo a frente. Ele me confidenciou que foi obrigado a ficar nu com o arcebispo, tocar no corpo dele, se deixar tocar”, diz. Apos essa conversa, e assustado com o rumo que o “tratamento” vinha tomando, ele conta que deixou de ir aos encontros marcados e afastou-se do arcebispo. B. ja estava sem esperancas e sem a certeza de querer voltar ao seminario e com a perspectiva de cursar uma faculdade. Pouco tempo depois o amigo que encontrou na missa tambem deixou o Pio X. Estava lancada a pedra da denuncia que seria feita anos depois, apenas agora em 2020, depois que mais dois ex-seminaristas juntaram-se a eles no ano passado.

Com A., teria sido pior. Apos tambem ser ameacado de expulsao do seminario por conta de um envolvimento amoroso com um colega e ter passado por diversas sessoes de assedio com o arcebispo como as descritas acima, ele teria sido chantageado por Correa para aceitar abusos sexuais quando demonstrou resistencia as investidas. “Ele disse que ia contar do meu caso no seminario para minha familia”, diz. Fora isso Correa teria prometido reintegra-lo, o que o jovem A. afirma que aconteceu apos ceder as investidas da autoridade religiosa. Reunia-se a sos com o religioso em seu escritorio e quarto, e conta que dentre os metodos utilizados pelo arcebispo durante as sessoes de orientacao espiritual estava a obrigacao de ficarem pelados juntos, olhando um para o corpo do outro como forma de “resistir as tentacoes”.

“Outra coisa comum era a reza junto ao corpo. Ele chegava junto de voce, se rocando, e fazia uma reza em algum lugar do seu corpo nu… teve vez que era no rosto e achei que ele ia me beijar”, afirma B.. “Tive que pegar nele e masturba-lo, ele pegava no meu penis e tentava fazer com que eu tivesse uma erecao… Outra coisa e que ele ficava nervoso quando voce nao conseguia, brigava, dava bronca, mas sempre com esse papo do tratamento, do estamos tentando te salvar… A cada sessao, ele ficava mais agressivo e violento, dizia coisas horriveis, lembrava de fatos passados para te humilhar, dizia que voce nao estava progredindo, dizia coisas horrorosas para voce, que voce era uma pessoa horrivel, era aterrorizante”.

Segundo relata A., apos mais de uma dezena de encontros com o arcebispo, em cerca de tres meses, ele o enviou para uma temporada de sete meses em uma paroquia como ajudante “dando um tempo”. Depois disso, conseguiu voltar para o seminario — de onde seria expulso definitivamente um ano e meio depois. “Eu tinha ficado revoltado, estava arrumando muita briga e confusao la dentro, nao funcionou mais para mim”, afirma.

O quarto ex-seminarista que participa da denuncia ao MP e as autoridades religiosas tinha 16 anos quando afirma ter sido abusado por Correa. Segundo seu relato, o arcebispo mandava o motorista particular busca-lo no seminario, nao raro de noite, para participar das sessoes de orientacao espiritual. Teriam sido diversas sessoes ao longo de alguns meses em 2014. Ele relata que, dentre outras sevicias, o arcebispo deitava-se nu de pernas para o alto e pedia para o adolescente penetra-lo. Como ele nao conseguia manter uma erecao, Correa ficava nervoso, gritava e o maltratava muito.

‘Confiamos no Papa’

Questionados do por que de resolverem denunciar o assedio e abuso sexual na instituicao so agora, tantos anos depois, os dois entrevistados afirmam que ja tinham formado esse grupo informal de vitimas com a ajuda de outros religiosos fazia alguns anos, e que vinham debatendo esporadicamente a possibilidade de tomar uma atitude desde meados de 2017, mas tinham medo. “Foi ai que precisamente em 9 de maio do ano passado, o papa Francisco publicou isso aqui”, diz o jovem de 26 anos, mostrando a Carta Apostolica “Vos Estis Lux Mundi” (Vos sois a luz do mundo, em traducao livre do latim) impressa em maos. “Isso aqui mudou tudo. Vimos assim que saiu e dissemos: opa, aqui existe um caminho, agora sim”.

Ex-seminarista relata abuso sexual que afirma ter sofrido do arcebispo de Belem. / TARSO SARRAF

O documento a que o ex-seminarista se refere e uma diretriz lancada no ano passado que estabelece uma especie de lei dentro do Direito Canonico com mecanismos e regras claras para que denuncias ou suspeitas de abuso sexual cometidas por membros da Igreja Catolica sejam investigadas internamente, compartilhadas com autoridades civis e punidas. O regramento possui 19 artigos e trata de delitos sexuais praticados por membros do clero, que nao tem a opcao de nao se submeter a ele.

Internamente, a denuncia foi apresentada primeiro a autoridades eclesiasticas no segundo semestre do ano passado e as autoridades civis apenas neste ano. “Achavamos que nao ia dar em nada, fomos atras das autoridades civis e foi quando aconteceu essa visita apostolica”, diz o hoje universitario. “Nos confiamos no papa Francisco e no esforco que ele faz para mudar as coisas que estao erradas na Igreja”.

Questionado pela reportagem, o Ministerio Publico do Para enviou uma nota em que informa ter recebido “denuncias de possiveis situacoes de abuso em relacao ao caso citado”, diz o texto enviado pela assessoria de imprensa do MP-PA. “As denuncias foram distribuidas aos Promotores de Justica com atribuicao na materia, que requisitaram a abertura de inqueritos policiais que estao sendo acompanhados pelo Ministerio Publico. A instituicao aguarda a conclusao desses procedimentos para a adocao das medidas legais cabiveis na esfera penal e civel. Os procedimentos policiais tramitam sob sigilo”.

Dom Alberto Taveira Correa esta com 70 anos de idade. Chegou a Belem como arcebispo, a maior autoridade na Igreja Catolica no local, em 2010. Antes havia sido o primeiro arcebispo metropolitano de Palmas, no Tocantins, funcao que exerceu por 14 anos a partir de 1996. Ja foi tambem bispo-auxiliar de Brasilia e comecou no sacerdocio em 1973 em Belo Horizonte, onde atuou como reitor do seminario local. “Bom dia Aiuri, a paz”, diz a resposta do pedido de entrevista com Correa enviada a assessoria de imprensa da Arquidiocese Metropolitana de Belem. “No momento nao podemos agendar entrevista com Arcebispo. Por orientacoes da justica, devido ser uma acao investigativa em curso em sigilo, nos impossibilita de atender seu pedido. Ate um segundo momento, continuamos apenas o que consta em nossa pagina mesmo.”

Apesar de tudo que contaram ter passado dentro da Igreja Catolica, nenhum dos dois ex-seminaristas que conversaram com reportagem afirma ter perdido a fe. “Hoje eu frequento. Escolho uma Igreja afastada onde ninguem me conhece, levo minha Biblia e participo da missa. Penso na vida, rezo, me benzo e vou embora quietinho”, relata B.

 

 

 

 

 




.

 
 

Any original material on these pages is copyright © BishopAccountability.org 2004. Reproduce freely with attribution.